quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Chuva, lago, peixe e escola

Texto especial de Maria Maia, a Mariazinha, em homenagem aos 85 anos do Careca, também conhecido como Milton Maia:

"Inverno amazônico. A chuva cai a tarde toda. Estou no Cabuletê e minha alma se molha como as árvores que meu pai plantou durante 30 anos lá fora: as castanheiras - uma delas será sacrificada pois cresce demais e está na passagem e se o ouriço cair lá de cima pode matar um. Mas tem outra lá atrás. E tem seringueira, cumaru-de-cheiro, mogno, cedro, imbaúba, samaúma, dendê, jatobá, abil, cajá, cupuaçu, copaíba, faveira, côco, coquinho ouricori, tucumã, pupunha, buriti, carambola, graviola, manga, ata, acerola, açai, abacaba, marupá, ixória, helicônia, viuvinha, lírio, acácia, orquídea bambu, antúrio, azaléia, flamboyant, cacto, maria-sem-vergonha, catinga da mulata, begônia, maravilha, manacá, alpinha, alamanda, cheiro-verde, rúcula, tomate, capeba, jambu, gengibre, taioba, cará, erva cidreira, manjericão, chicória, salsa, alecrim, açafrão, boldo, alfavaca, capim-santo, hortelã, menta, pimenta...chá, chá, chá. Meu pai criou no Cabuletê um pulmão verde para compensar o seu, consumido pelo enfisema que o cigarro lhe deixou. Com este pulmão resistiu 30 anos, até morrer aos 83.



Vista do Cabuletê


Taioba da folha branca, no banheiro do Cabuletê
Ah! o velho Careca. Quase analfabeto, teve de deixar a escola aos 10 anos para trabalhar na coleta de castanha. Filho do velho Benedito que ganhou o apelido de Pega-pinto graças ao refresco que fazia com a raiz de... pega-pinto. Jura minha mãe que o pega-pinto é mais que um remédio: limpa o sangue. Nesses tempos de coca-cola zero e água adicionada de sais seria muito bom provar o velho refrigerante que o vô Benedito vendia no Tentamem.
Não conheci meu avô. Morreu cego, ditando poemas pros filhos copiarem. Não devia ditar pro meu pai, coitado, pois este sofria do grave defeito de ser canhoto, pecado jamais perdoado pelos mestres da escola onde ia com um pé calçado e o outro descalço, tingido de urucum. Precisava dividir o sapato com o irmão que usava do mesmo estratagema. É, o Benedito poeta e vendedor de refresco de pega-pinto não tinha mesmo dinheiro pra comprar os sapatos todos dos meninos e o grupo escolar não perdoava. Só entrava calçado. Então o jeito era fazer de conta que o outro pé estava machucado. Acho que veio daí o hábito de meu pai de usar a imaginação. Era um contador de história nato. Mais. Era um criador de história. A do bebê, encontrado chorando na porta do cemitério - o Benedito morava com os filhos ao lado do cemitério - quando ele voltava de uma festa arrepiava meus cabelos de menina, quando ia dormir. Pois ele resolveu levar o tal bebê ao mercado, naquela madrugada de friagem cortante, na esperança de encontrar uma alma caridosa que ficasse com o menino. Colocou então a criança morta de frio debaixo do capote e seguiu. No meio do caminho ele resolveu abrir o capote pois o menino começou a pesar. Pois não é que o danado já não era mais bebê, mas o próprio capiroto e arreganhou os dentes, num sorriso de vampiro? O Careca, abandonou imediatamente o coisa ruim e saiu em desabalada carreira. Ao se aproximar da catedral viu na esquina uma pessoa. Pensou, ufa! finalmente, uma alma viva! E lá se foi contar a história do menino desamparado que pesou no capote e arreganhou os dentões enormes de vampiro danado. Pois o homem virou-se para meu pai e abrindo um sorriso falou: e não serão estes dentes aqui, não? Pena que o Careca não pode continuar na escola. Pois além dos sapatos o grupo escolar exigia que os alunos fossem destros. Canhoto tinha que passar a aula toda com o joelho no milho ou com a mão esquerda para cima, como numa saudação hitlerista. Além de receber palmatória até que abandonasse o perigoso "vício" de escrever com a mão esquerda. Resultado, o Careca fugiu da escola e o Benedito não reclamou, já que ele ajudava em casa carregando latas de castanha nas costas. Careca cresceu fora da escola, mas virou sábio. E casou com a Raimunda, filha de soldado da borracha aqui chegada em 44, aos 11 anos.
Raimunda e Careca
Tia Raimunda
Ela também não pode ir pra escola por muito tempo. Os 6 filhos foram chegando um em cima do outro e Raimunda não tinha tempo de estudar pois além dos filhos ele ajudava o Careca na Casa do Pão, hoje belíssimamente reconstruída lá no novo Mercado Velho. Mas de pão em pão o Careca e a Raimunda deram formação universitária para todos os 6 filhos. Eu mesma, estudei um bocado, mas não consegui alcançar a sabedoria do velho Careca. Foi um ecologista antes do tempo. Além de plantar pra respirar, distribuia mudas por toda a cidade. Foram mais de 200 mil, ao todo, desde que criou a Reflorestadora Silvestre, batizada poeticamente com o Silvestre que Raimunda carregava quando solteira. Aqui no Cabuletê não deixava matar bicho algum.
Nem caranguejeira nem cobra.
Cobra, com 3 metros, da criação do Careca no Cabuletê
Caranguejeira, da criação do Cabuletê, que nos visitou no dia
do aniversário da Matriarca Zilma, em 29 de julho de 2006
Antes da estrada passar, pois há sempre uma estrada que passa para atrapalhar, tinha um açude onde criava tambaquis, pirarucu, jacaré, tilápias, carpa, curimatã, pacu e o que mais pudesse, só pelo prazer de distrubuir com os amigos e com quem mais viesse. Certo dia foi com meu irmão comprar uns alevinos pro açude. Ao invés do habitual milheiro que comprava todo ano, resolveu comprar 5 milheiros. Meu irmão estranhou, Mas pai, pra que tanto peixe? Não se incomoda, toca lá pro Amapá.
Tancredo Filho, Careca e Mariazinha, no Açude do Braga
E lá foram, os peixes, meu irmão e o Careca pro lago do Amapá. Lá chegando o Careca pegou os alevinos e jogou no lago. Diante do olhar espantado do meu irmão, falou: este lago deu muito o que comer pra minha família quando eu era menino. Agora tô devolvendo um pouco. E como era um pacificador nato, me disse um dia: dou graças ao meu mestre que me tirou da escola e me colocou a lata de castanha nas costas. Me ensinou a trabalhar bem cedo. É, o Careca não teve muito estudo mas, em matéria de sabedoria, desbanca muito doutorzinho por aí.
Alan Kardec e Careca, na praia da Base

As quatro estrelas do Oriente, segundo vô Benedito, em Cruzeiro do Sul, em 1953

Tancredo, Alan Kardec, Milton e Mário

(fotos do álbum de Tancredo Maia Filho)

5 comentários:

Anônimo disse...

jrQuerida Mariazinha,

gostaria de expressar toda minha alegria e emoção que estou sentindo nesse momento ao ser o seu depoimento, morei em Rio Branco por um ano em 1985 ou coisa assim não me recordo o ano certo e tenho a felicidade de dizer quer um do melhores amigos que fiz aí foi o Vô Careca, lembro-me da casa na Rua São Paulo, e da casinha que dava pros fundos onde eu morava com meu pai e tinha um portão que dava pra piscina.
Fico feliz em ter ficado sabendo um pouco mais da vida dessa pessoa tão especial, lembro-me das nossas idas ao sítio para pescar, quando esse lugar aí ainda não tinha nenhuma estrutura, agora vendo as fotos no blog fico orgulhoso de saber o quanto ele amava esse lugar e saber que esse cantinho tão especial faz parte da minha vida e quero ter a oportunidade de ver toda a beleza do Vô Careca estampada no Cabuletê, gostaria de contar uma história que aconteceu durante esse um ano que estive no Acre que era um segredo nosso até poucos segundos quando resolvi contar para todos, um belo dia de domingo almoço marcado na chacara do meu avô Tancredo, se não me engano em Bujarí acho que e esse o municipio sei que é saida para o aeroporto, eu tinha uma prova de bicicleta para correr e meu pai muito paciente não quis me esperar e nem vê a prova, então optei por ficar sozinho e correr, depois da prova resolvi pegar minha bike e ir para o sitio sem que ninguém soubesse da minha ida e fui, longe... quando chego no meio do caminho quem vem lá? Vô Careca e passou pela bicleta na estrada e me conheceu mesmo usando aqueles oculos de fundo de garrafa, parou, e disse: e rapaz onde voçê tá indo nessa bicicleta? então eu lhe contei a história, aí ele disse: vamos faser assim coloca a bicicleta no porta malas e vamos comigo se não voçê vai demorar muito pra chegar o sol muito quente mais a minha vontade era de chegar lá do geito que eu havia saido de bicicleta pra provar pro meu pai que mesmo ele não me esperando eu tinha capacidade de chegar, e retruquei falei não vô eu vou pedalando mesmo, ele disse então vamos fazer assim voçê vai comigo quando chegarmos perto voçê desce espera um pouco e chega e fala que veio pedalando e esse será o nosso segredo, nunca me esqueci disso e o pior que a hitória colou todos ficaram abismados em pensar na distâcia percorrida, é isso que eu tinha pra comentar.

Beijos no coração de todos

Alexandre Maia(filho do Tancremildo e da Rosa Maria)

Tancredo Maia Filho disse...

Grande Alexandre, grande Careca.
O Careca era esta figura, sempre pronto para dar uma solução para as mais enroscadas situações. Este relato/segredo do Alexandre demonstra o grande respeito que os Careca tinha pelo próximo. Pra todos os efeitos, o Alexandre, com o apoio do Careca, fez a viagem de Rio Barnco ao Quinari de bike.

Anônimo disse...

Tio Tancras,

Muito obrigado pela lembraça do nome do municipio que é Quinarí e não Bujarí com havia falado

Obrigado Tio vc é o meu Heroi

Anônimo disse...

Olivia diz:
Maricota,
Você acordou em vários de nós, a exemplo do relato do Alexandre, boas e grandes lembranças do nosso Careca. Digo nosso pois o Careca povoa, até hoje, o imaginário de muitos de nós. Temos sempre uma estória, uma lembrança. Estive no Cabuletê durante uma tarde toda, um ano anos do desencarne dele. Sentado na rede ele insistia para que fossemos ao lago conhecer a "pedrita" (a cobra de estimação) e eu do alto dos meus 50 anos olhava pra tia Raimunda como se perguntando se a cobra existia ou não. Esse era um dos baratos do "Nosso" Careca - falar com tanto naturalidade de suas fantasias, que o nosso mundo infantil se traspunha a realidade e ficava maravilhosamente "encantado".
Quando voltei ao Cabuletê já depois de sua partida, não havia saudade, não havia falta. Ele conseguiu deixar tudo preenchido de lembranças, fatos, árvores, bichos, estórias, pessoas acolhedoras, valores, alegria...
Beijo menina. Lindas lembranças! Cada dia fico mais horada de pertencer a este clã a esta trupe.

Anônimo disse...

Ele chamava minha mãe de cor-de-rosa. Aí uma vez o encontrei no chalé de Caldas Novas (o Ninho da Coruja, da Áurea e do Geraldo) e ele me contou essa história da minha mãe ser cor-de-rosa (era por causa do sol q ela tomava e ficava dessa cor). Eu olhei pra ele e achei que cor-de-rosa era ele. Pronto. Até hoje, pra mim, ele é o tio cor-de-rosa.
Esse foi o único encontro com o tio Milton que eu me lembre. Além disso, uma vez o vi na TV, no baile de carnaval no Rio Branco (era ele o carnavalesco, né? de fraque e cartola...). No entanto, as histórias que já ouvi dele e o Cabuletê que conheci pessoalmente no aniversário da Tia Zilma me trazem uma sensação de saudade e respeito muito intensa. Obrigada, Tio Careca, pelos ensinamentos!
Jandira